segunda-feira, 21 de abril de 2008

Alas mais profundas da Igreja

Seu brilho iluminava todo o corredor. Contra a oscilante luz das velas e tochas que encontraram no caminho, reluzia um dourado penetrante e hipnotizante, tentador ao olhar.
Aos que por ela se interessavam, era encantadora. Aos outros, apenas mais um tesouro perdido. Mas, uma coisa há de se concordar, era lindo, digno do mais rico e respeitado dos reis. Não que pelas mãos de alguns desse tipo não tivesse passado, apenas, nunca os pertencera. Nem à eles, nem aos mouros e cavaleiros medievais, que em suas mãos guardavam um segredo e uma relíquia sem tamanho.
O corredor, apesar de pequeno, abrigava os três perfeitamente. Pelo menos por enquanto. Corriam e se escondiam já há vinte minutos, mas não estavam cansados, pelo contrário, a adrenalina dava a eles a certeza de que, em mãos, uma pequena parcela do desejo mais profundo estaria seguro. Era como ânimo injetado diretamente na veia.
Era hora de continuar a fuga, os Kramustov vinham em direção ao corredor, e os três irmãos logo seriam encontrados. Peter e Borke, os trogloditas dos Kramustov causariam tantos danos os ossos e faces dos irmãos que apagaram as velas e continuaram por outro corredor paralelo ao que estavam, e na direção contrária ao perigo.
Correram por entre grandes alas pouco iluminadas, tateando com pressa e cuidado as paredes, buscando uma porta de saída. O denso escuro dava aos irmãos a impressão de que a qualquer momento atrás de uma porta, encontrariam Peter e Borke à espera deles. O pensamento cruzou a mente dos três, mas não ousaram dividir suas emoções.
Enquanto isso, os Kramustov bufavam às portas de uma ala menor que as outras. Suas lanterna ligadas e direcionadas à papéis assentados em uma mesa antiga e empoeirada, com uma inscrição em latim mencionado Deus, família e respeito. Era, sem dúvidas um item de valor, histórico e religioso. Estavam, inacreditavelmente, nos subterrâneos de uma capela.
Os Kramustov tentavam comunicar-se com aluguns de seus aliados, principalmente os financeiros, na inútil tentativa de impedir a fuga bem-sucedida do trio. E irritavam-se ao saber que estavam longe, segundo os radares.
A verdade era que essa distância que enlouquecia os Kramustov, na realidade não passava de alguns corredores e alas ao sul. Os irmãos haviam quebrado parcialmente os radares presos à suas calças por Peter e Borke e isso os fazia soltar tanto faíscas quanto informações aleatórias e erradas.
Não só os radares como alguns olheiros de confiança dos Kramustov não estavam funcionando conforme o plano. O porteiro-segurança da capela, já morto por sua deslealdade, havia informado, em seus últimos minutos de vida, que os irmãos haviam saído da capela e entrado em um táxi.

Não fosse o fato de a informação estar completamente errada, os irmãos ainda não muito distantes dos Kramustov, provavelmente não estariam vivos. E por mais que tentassem não pensar em como o fantasma da morte os cercava, sentiam, vez ou outra, um único calafrio na espinha, suficiente para apertarem o passo e continuarem em busca de um esconderijo. E encontraram-o mais rápido do que esperavam. Era mais uma ala como muitas das que haviam passado. Mas dessa vez, ao invés de móveis antigos e empoeirados, encontraram uma enorme quantidade de artefatos eclesiásticos. Era um enorme volume de bíblias em latim, inglês e italiano, assim como crucifixos de todos os tamanhos e materiais, variando do de madeira ao pérola. Era como uma sala de estoque, com a aparência de não ser nem ao menos aberta a mais de dez séculos. Impressionaram-se com os mistérios que a capela, aparentemente pequena e insignificante, parecia mostrar-lhes a cada minuto que passava.
O mais velho dos três irmãos, ao ver todo aquele amontoado esquecido sugeriu aos outros dois, o que, até então jamais seria ao menos cogitado. Explicou-lhes que aquele lugar seria perfeito esconderijo para a parcela de tesouro que carregavam. Deveriam o deixar ali e fazer o caminho de volta, ao encontro dos Kramustov, enfrentarem o perigo e decidirem de uma vez por todas a situação, uma vez criada.
Por mais que o medo do que estaria por acontecer e a insegurança do futuro caísse como uma bigorna no estômago dos três, sabiam que aquela era a decisão certa a se fazer. Não podiam deixar que a prepotência dos Kramustov os fizessem fugir. Enfrentar-lhes seria a mais plausível das soluções que poderiam tomar. E o fizeram. Deixaram todos o tesouro que tinham em mãos na sala, junto às bíblias, na esperança de ainda poderem voltar ao seu encontro.
Os Kramustov não foram muito difíceis de encontrar. Ainda estavam aos gritos às portas da mesma ala pequena, desesperados com as novas informações dadas pelos olheiros. Não sabiam o que fazer, procurar o trio, o resto do tesouro ou dar a busca por encerrada e retornarem ao mundo real. Não sabiam a surpresa que os esperava.
Os três irmãos, um pouco receosos da reação do Peter e Borke ao vê-los, decidiram buscar a outra porta de acesso à ala, oposta a que os gritos vinham. A pouca iluminação da ala não permitiu aos Kramustov que vissem a chagada os três. Somente ao aproximarem-se da penumbra foi possível a identificação. Sem titubear, os trogloditas partiram bruscamente em direção aos irmãos que retornaram à escuridão, acreditando que ela os esconderia. Nesse momento, um grito desafinado e desalmado ecoou em uma negativa ao ataque fazendo com que os sorrisos maléficos e desdentados dos trogloditas desaparecesse. Os Kramustov não queriam simplesmente matar os irmãos, queriam, antes de tudo, saber o que os levava à eles. Seria pura ousadia ou teriam uma jogada nas mangas?
O interrogatório começou e os Kramustov não perdoaram, queriam humilhar os irmãos a ponto deles perderem a cabeça. e foi o que aconteceu. No entanto, como já era do conhecimento de ambos lados, Peter e Borke eram mais fortes e destruidores que uma matilha de lobos selvagens do norte da Sibéria.
O trio sabia que em termos de força perderiam fácil e rápido. A inteligência era a única arma que tinham contra os Kramustov e seus trogloditas.

Após muitas perguntas, sarcasmo e humilhação, os Kramustov, cansados e irritados com os poucos resultados que obtinham, resolveram mudar a tática do "jogo". Com mais um grito desafinado, Peter e Borke foram acionados, fazendo os irmãos se assustarem e recuarem. Os trogloditas olhavam para os três como se fossem carne fresca pronta para consumo. Imediatamente o trio percebeu que não poderiam escapar. A porta pela qual haviam entrado já estava fechada e cercada por aliados dos Kramustov, caso a a tentativa da fuga ocorresse.
Como um trem descarrilado, os trogloditas partiram para cima dos irmãos. A luta que se seguiu foi feroz e os três, mesmo em maior número, perderam. Haviam sido arremessados inúmeras vezes contra as paredes e mesas da pequena ala. Seus ossos ja haviam perdido a forma original e não tinham mais força para lutar ou revidar. Todo a vontade de ter o tesouro em mãos, não para gastá-lo em inutilidades, como os Kramustov faria, mas sim pelo simples fato de tê-lo, uma relíquia sem igual, de valor inestimável e esplendor infinito. O sonho dos irmãos acabara ali, em uma minúscula ala das profundezas de uma capela.
***
Muitos anos se passaram, mas a busca pelo tesouro ainda continuava. A capela pequena e aparentemente insignificante ainda guardava esse enorme segredo. Dessa vez, quem os procurava era um grupo de amigos, cinco jovens australianos. Os amigos souberam da aventura vivida pelos três irmãos e resolveram averiguar. A capela conservara o tesouro na mesma ala em que os três o deixaram. Os amigos não tiveram dificuldades em achá-la, não sabiam se era sorte ou mesmo o destino que os levara até ela.
Entre as bíblias e crucifixos misturados à todo o ouro que o trio havia deixado na sala de estoque, os cinco amigos encontraram um bilhete assinado pelos três irmãos definido, após anos de esquecimento e mistério, os donos do fantástico tesouro: "Àqueles que encontrarem nossa relíquia, toda ela sua será".

domingo, 23 de março de 2008

Uma última lembrança

De dentro da avião ele via muitos pontinhos brancos. Entusiasmado perguntava ao pai o que eram e o pai lhe respondia: " São bois meu filho, aqui nesta região há muitos deles, os argentinos são os maiores churrasqueiros que esse mundo já viu!". Encantado o menino pediu que logo que chegassem ao hotel e desfizessem as malas, saissem para comer uma carne, daquelas que o pai tanto elogiava.
O hotel era um prédio antigo e muito bonito, logo na esquina de uma das ruas mais movimentadas e moderna de todo o país. No quarto, muito aconchegante, haviam duas camas de solteiro que serviriam perfeitamente para pai e filho, num feriado prolongado que prometia ser o melhor em muito tempo. Entretanto, a chuva castigava a capital mundial das carnes suculentas, o que impossibilitou a saida a qual o menino estava tão desejoso. O hotel, com todo seu conforto, oferecia na primeira noite um belo jantar com uma grande variedade de carnes e massas, vinhos de diferentes uvas e safras e doces de diferentes variedades e sabores. Era, para o menino, a definição perfeita de paraíso. Para o pai no entanto, uma preocupação se sobrepunha a todas as maravilhas do jantar e da alegria de estar mais uma vez com o filho. Ela sabia que o jantar e os oito dias que passariam juntos, passeando e se divertindo, não seriam suficientes para apagar o que na memória do filho ficaria marcado para sempre.
No primeiro dia eles acordaram tarde e ambos tomaram banho calmamente, sem pensar em hora. Queriam aproveitar, cada um de sua maneiro, e por seu próprio motivo, o máximo que conseguiam. Sairam então, por volta do meio-dia, quando o sol estava em ponto mais conturbante e buscaram uma livraria, a mais bela e mais conhecida da cidade. Era um antigo teatro de óperas em que o palco se transformara num Café no estilo europeu e onde antes era a platéia, agora ensontravam-se as enormes prateleiras cheias de livros, nacionais e internacionais, de culinária e de sociologia, de cantores famosos e das maiores desgraças que este mundo já viu. O menino, a cada passo que dava, se deslumbrava mais. Não sabia direito para onde olhar e não entendia muito bem o que as capas diziam, nem sobre o que os livros tratavam mas, olhava cada um com tal interesse, como se tudo aquilo fizesse muito sentido.
Cinco dias depois, já conheciam praticamente toda a cidade e seus pontos turísticos mais visitados. O único lugar restante era a feira de antigudades em um bairro mais afastado, muito conhecida por seus trabalhos à mão e suas peças únicas, dos séculos que o menino não imaginava existir. O pai já se sentia cansado e torturado por suas próprias idéias. Eram poucos os momentos que ele relamente aproveitava a companhia do filho, seus pensamentos o levavam além dali, e isso já o atormentava de tal forma que fez uma decisão.
"Meu filho, você sabe que na vida, as pessoas grandes fazem escolhas. Essas escolhas podem afetar todos ao seu redor. Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso". O menino não entendia porque o pai falava aquilo, justo ali, na calçada, em frente ao hotel, quando voltaram de um paseio maravilhoso. "Eu sei que eu nunca fui muito presente na sua vida mas, eu precisei resolver muitas coisas antes deixadas para trás. A morte de sua mãe mexeu muito comigo e eu não sabia se conseguiria cuidar sozinho de você. Precisava desesperadamente de um tempo. Um tempo que nunca mais voltará, eu nunca o terei de volta". O menino, espantado e levemente chateado, agora que percebia que não voltariam a passear pela cidade e, provavelmente a viagem já não seria mais a mesma, respondeu firmemente: "Nem eu. Nunca mais terei minha mãe e o tempo que você passou longe, eu nunca mais recuperarei. Desde os meus quatro anos de idade até hoje, com dezessete, minha vida foi um grande espaço em branco que nunca será preenchido. Eu devo isso a você e a suas dúvidas. No entanto, nunca reclamei nem cobrei. Sinto sua falta e me sinto completamente impotente ao saber que você, com seus atormentados pensamentos, se afasta de mim cada vez mais". O pai chocou-se ao ouvir do filho, que até então comportara-se como uma criança, fazendo novas descobertas sobre o mundo e sobre a vida, todas aquelas palavras duras que pareciam estar guardadas há muito tempo em seu peito. "Amanhã não estarei mais com você". "Claro que não, amanhã voltamos para o Rio e você, depois de me deixar em casa, vai seguir sua vida insana, sem rumo e sem propósito, como sempre fez". "Não meu filho, amanhã eu relamente não estarei com você. Hoje é o último dia que temos juntos. Preciso ir embora e deixar você viver sua vida, sem meus pensamentos te atormentando, ou minhas decisões que nunca se decidem por inteiro, sou apenas uma cruz que você inconscientemente carrega, não posso deixar isso continuar. Tudo que tenho é seu, quero que seja seu. Para que lembre-se de mim e não repita os erros que cometi". Os dias e anos se passaram e, assim como o pai havia falado, os dois não se encontraram mais.
Muitos anos haviam se passado. O menino, que agora já era um homem de família, casado e com duas lindas filhas, passeava pela cidade que, anos antes o dera tanta alegria e um única enorme tristeza. Pensou, ao passar pelo hotel em que se hospedara, agora um bordel sujo e com péssima aparência, ter visto o pai, velho e despenteado. Continuou a andar, sabia que as memórias daquela viagem não o faziam bem. Abraçou suas filhas e sua esposa, e o fantasma de seu pai sumiu, assim como o próprio fez.

sábado, 22 de março de 2008

Potinho de vidro vazio

Nunca foi díficil perceber o que entre eles havia. Especialmente para ela, que na janela esperava, todos os dias, úteis e inúteis. Mais os inúteis. Nunca foi muito de livros e poesias. Sua grande fascinação eram as monstruosas costruções da cidade grande. Seu sonho era conhecê-las mas, sabia desde pequena, e a mãe não importava em repetir, que filha da lavadeira de madame e carteiro de feriado não teria futuro promissor. Mesmo assim, ela sonhava. Sonhava que subia nos arranha-céus da capital e de tão perto das estrelas que estava, guardava um tantinho de nuvem, para nunca se esquecer daquele momento glorioso.
As grandes emoções da cidadezinha, além dos casamentos das filhas do delegado e de Dr. Justino, o ortopedista, eram poucas. Vez ou outra os moradores se reuniam e arranjavam, entre muita gritaria e desentendimento, jeito de fazer festa de São João, ali mesmo, na praça da cidadezinha.
A menina nem ligava. Queria mesmo era conhecer um moço bem apessoado da capital que pudesse a levar embora. E quem sabe então ela teria aquele pedacinho de céu que tanto almejava.
Após muitas primaveras, sempre à janela, esperando por uma única gota de esperança, suas preces foram ouvidas. Imediatamente a jovem moça pôs-se a disposição do mais novo e mais breve morador da cidadezinha. Jacson, o construtor civil, morava na capital e, além de uma boa casa para morar, buscava uma noiva. Na realidade, Jacson buscava o tão aclamado e bem recomendado tratamento ortopédico do Dr. Justino. O jovem rapaz havia voltado da guerra, mas ainda não se recuperara de seus traumas na panturrilha. Elas o incomodavam ferozmente, e Jacson sabia que sem a ajuda de uma noiva dedicada, e claro do Dr. Justino, suas panturrilhas jamais voltariam ao normal.
Quatro anos se passaram e não houve um dia em que a bela moça não dedicasse todo seu amor e devoção ao noivo. Viviam felizes e se amavam. Mas seu sonho ainda não se realizara. As nuvens que pelo céu deslizavam sem pressa davam a moça a impressão de aquele dia nunca chegaria. Mas, na vida, há de se esperar pelo momento certo, para que sua vontade seja realizada.
Não havia mais o que esperar. As panturrilhas de Jacson reluziam de tanta força e os olhos da moça reluziam só em pensar em seu breve futuro.
"Não há de que se acanhar minha amada. Aqui em cima tudo é calmo e sereno, como onde te achei. Não há o que temer. Estou contigo e não te deixarei sozinha. Agora estaremos para sempre juntos. Nosso amor durará tantos anos que nem iremos nos lembrar desse dia presente. Mas ela sabia que iria, jamais se esqueceria do momento em que seu grande sonho se realizaria.
O ar em seus pulmões já não circulava. Suas veias saltavam a todo lado. O coração batia descompaçado. Já não mais distinguia realidade e sonho, o desejo a consumia. Mas ela não queria se controlar, sabia que jamais viveria aquele momento de novo, e por isso, o vivia com a maior intensidade que conseguia.
Era tão alto, tão belo e alvo como cera de vela. Inesquecível seria aquele dia. De dentro de sua pequena bolsinha bordada à mão pela mãe, como presente por sua partida, a moça tirou um pequeno potinho de vidro, vazio e pronto para se encher com um sonho de menina. Seu rosto irradiava alegria e seu noivo vivia com ela as emoções mais fortes e bonitas que um amor pode viver. Estavam juntos e jamais se separariam, aquela nuvem criou neles um elo. Ela jamais esqueceria, jamais".
Irrompeu da escuridão com um grito longo e desafinado. Descobriu-se em sua própria cama com o noivo ao seu lado, sua panturrilha já inteiramente curada. E em seu criado-mudo o relógio indicava que o Sol ainda não nascera. Ao lado, a bolsinha bordada à mão e o potinho de vidro vazio. O trem até o Centro ainda demoraria três horas para passar. Seu sonho estava prestes a se realizar.